Eu queria ter mandado minha história pra você no dia do amigo, mas fiquei ocupado, meus donos estavam abalados, não consegui concluir. Hoje vim para me despedir.
Como você já sabe eu sou o Thor, latido grosso, desproporcional pro meu tamanho, mas popularmente sou conhecido como Thorzinho, por que na verdade só faço tipo, sou muito, muito bonzinho.
Nasci em Joaçaba, na casa da família da minha dona. Um homem que se dizia humano queria me comprar pra me deixar preso a uma corrente, imagina eu preso, nem pensar. Quando meus donos foram conhecer a ninhada, logo me apresentei, cheguei bem pertinho dele, abanei meu rabo, me contorci, rebolei, demonstrei muita alegria, olhei bem nos seus olhos, depois me sentei e fiquei, deixei eles sem opção por que eu que os escolhi. Viajei já aprontando, vomitei no banco, chorei, mas eu tinha apenas quarenta e cinco dias, era tão pequeno que cabia numa caixa de sapatos, mas quando ganhei o colo da minha dona me acalmei, me acomodei.
Minha personalidade sempre foi muito dócil, muito, muito sociável, então sempre fazia as honras da casa. Ao ouvir o telefone fixo tocar já corria pro portão, era o primeiro a chegar e para ganhar a confiança abanava o rabo, baixava a cabeça dando a dica que podiam me acarinhar.
Sempre fui bonzinho, até mesmo com meus veterinários (a quem sou grato), nunca mordi ninguém, nunca destruí nada, a não ser três cintos de segurança quando nas viagens me prendiam no banco traseiro do carro. Destruí também um rolo inteiro de papel higiênico que descobri no banheiro, mordi a ponta que balançava e fui puxando pelo quintal afora até acabar. Tenho que confessar, minha dona assistiu minha travessura, mas nem brigou, mantive distância, sondei e percebi que ela estava sorrindo, se divertindo.
Aprontei mais uma vez quando eles fizeram um bate e volta pra praia e não me levaram. Me aventurei, passei por baixo da nossa tela, atravessei a rua, descobri um buraco na tela no vizinho, não tive dúvidas, entrei. Me deparei com dois amigos gigantes, um labrador e uma rottweiler. Como sou muito sociável, logo me enturmei, passei o dia lá, quando meus donos chegaram no final da tarde, depois de muito, chamar, procurar, me acharam. Nos dias que se seguiam, esperava meus donos saírem pro trabalho e fugia, tive um amor platônico pela rottweiler, a Mel, por isso ia visita-la com frequência. Me aventurando um pouco mais no condomínio, descobri novas ruas, novos amigos, pássaros gigantes que na verdade eram galinhas, enfim descobri um mundo de possibilidades até que minhas escapadelas cessaram, fizeram uma sapata e cimentaram a tela.
Tanto na chácara quanto na praia, apareciam lagartos no quintal. Falaram pro meu dono que se eles me mordessem seria idêntico a mordida de jacaré que pega a presa, morde, gira até arrancar o pedaço. Deus me livre, meu dono ficou horrorizado, ao menor sinal de lagarto colocava pra correr. Uma manhã de sábado fiquei latindo muito no entorno do barraquinho da chácara que ficava colado ao muro por onde os lagartos entravam. Meu dono suspeitou que tinha um ali, não teve dúvidas, cimentou todas as aberturas, só restando o buraco do muro por onde eles saiam e entravam. No domingo à tarde fui novamente no entorno do barraquinho e fiquei latindo, latindo, minha dona apareceu e ouviu um miado, aff não era um lagarto era um gato kkk. Calma, calma, ele estava bem, ganhou água, comida e depois tive que colocar pra correr, afinal aqui queria permanecer.
Sempre tive uma caminha confortável e também uma casinha para dias mais frios. Nunca tolerei roupas, tenho alma e corpo libertos. Nunca fui a um Pet, sou um cachorro raiz, cortavam minhas unhas, limpavam meus ouvidos e como sou um salsicha com corpo comprido, pra tomar banho só cabia numa banheira de bebê, sou parrudo, bacia tradicional é pros linguiças miúdos.
Sou persistente e até mesmo manipulador, especialmente para comer e passear. Hummm, adoro passear, quer seja a pé ou de carro. Mas sabido que sou, logo passei a identificar o que era uma mala de viagem e ai fazia marcação cerrada, era o primeiro a entrar no carro. Eu fazia questão de participar de tudo, quando meus donos iam pra praia, lá estava eu, amava ver o mar, sentava na areia a contemplar.
Vocês não vão acreditar mas eu tive uma única namorada, a Milu, minha vizinha de frente. Mas sou moderno, ela que vinha na minha casa namorar e gentleman que sou, esperava sempre ela comer primeiro, só depois eu comia. Desse namoro, tivemos uma ninhada de sete filhotes.
Sabe, até os dez anos minha saúde foi de ferro exames todos no topo, mas depois dei trabalho, muito trabalho, fiquei sem andar mais de sessenta dias em consequência de uma hérnia de disco, senti muita dor, tomei até morfina e o diagnóstico dos veterinários era de que não voltaria a andar. Meus donos nunca desistiram de mim, faziam tudo para que me mantivesse limpinho, quentinho, sem dor, era maio e na chácara faz muito frio. Também contrataram um veterinário que me enchia de agulhas pra aliviar minhas dores, era a tal de acupuntura, como o resultado foi muito bom, pra não correr o risco de voltar a sentir dor continuei fazendo até hoje.
Naquela época eu não andava com minhas patas traseiras, só me arrastava dentro de casa. Para diminuir meu tédio, minha dona me levava pra andar na rua, sustentando minha barriga com um lençol. Eu amava, era meu momento de liberdade, de descobrir novos amigos, novos cheiros, meu momento relax. Quando ouvi que iam comprar uma cadeirinha de rodas percebi que era a hora de dar meu sprint final, me coloquei sobre as quatro patas, me equilibrei e voltei a andar. Todo mundo fez festa pra mim, inclusive os veterinários que duvidaram que eu voltaria a andar, tudo bem eu nem ligava, voltei a ter minha independência, à ser livre para andar, correr, fazer minhas necessidades na grama, enfim tomar conta do quintal, da casa e dos meus donos.
Posteriormente tive várias vezes obstrução no canal do xixi, eu era praticamente uma fábrica de pedras na bexiga e aí peguei uma superbactéria, tratamos por seis meses com até dois antibióticos dia e contrariando todos os prognósticos me recuperei.
Na primeira vez que fiquei hospitalizado me senti abandonado. Quando tive alta, minha dona entrou na sala primeiro, bem feliz, fazendo festa pra mim, eu estava preso numa gaiolinha na altura dos olhos dela e esperto que sou virei a cara na hora, demonstrando minha tristeza, minha decepção especialmente com ela, então nada de abanar rabo, nem dar lamdidas e muito menos demostrar alegria até ouvi a veterinária comentar: “nossa nunca vi um cachorro tão magoado”, mas sou fraco minha indiferença durou pouco, dois dias depois não resisti e voltei a ser eu. Tá, eu admito, não gosto de ficar sozinho, principalmente em dias de tempestade, trovões, quero sempre estar com eles.
Ops, quase esqueci, a fase mais feliz da minha vida, foi quando os humanos passaram a usar “focinheira”, meus donos nunca mais saíram de casa. Tudo ficou perfeito, o dia todo, o tempo todo, TODOS em casa.
Meus donos também adaptaram toda a casa, não podia mais subir e descer degraus, nem mesmo conviver com outros amiguinhos, seriam muitas peraltices e minha coluna não suportaria.
Eu não falo a língua dos humanos, então preciso ser hábil no meu comportamento, nas minhas atitudes, sempre demonstrei ser fiel, generoso, amável. Para chegar ao coração dos humanos e principalmente dos meus donos, me utilizei do meu olhar passando leveza, meiguice, transparência, fidelidade, amor. Queria que tivessem a certeza que eu estava aí para alegrar seus dias, tornar suas rotinas menos enfadonhas, e seus momentos muito, muito mais felizes. Eu precisava criar memórias felizes. Vivi para limpar suas energias, deixar a casa em alto astral, arrancar sorrisos, fazer e receber carinho, não guardar mágoas estar sempre a postos para recepciona-los com festa e nisso eu era um excelente promoter.
Nos últimos tempos a idade também pesou pra mim, passei a ficar mais lento, fazer passeios mais curtos, me assustava com sons estridentes por conta da minha perda auditiva e também já não enxergava direito pois tinha cataratas, dormia muito, mas mesmo assim me mantive altivo, independente.
Mas sexta de madrugada me senti mal, disfarcei, me esforcei mas minhas dores tinham uma proporção descomunal, então fomos para o hospital. Fui avaliado, tomei morfina e outros remédios e retornamos as dez horas para exames recebemos o diagnóstico: pancreatite aguda crônica. Essa inflamação se espalhou pro meu fígado, intestino, não consegui mais comer, tive acesso aos melhores medicamentos, mas dessa vez eu não respondi. No domingo à tarde antes dos meus donos entrarem pra me ver, foram chamados numa sala e a equipe informou que meu estado havia piorado e que era muito, muito grave. Quando entraram para me ver eu tinha dificuldade até de manter meus olhos abertos, mas ainda percebi nos olhos deles o medo de me perder. Quando se aproximaram, meu dono sem muita coragem por que não queria ver meu sofrimento me acarinhou, minha dona se fingindo de forte se aproximou, bem de leve me abraçou, gemi várias vezes baixinho pra ela entender que estava difícil, muito difícil e para quebrar aquele momento triste a veterinária me elogiou dizendo” ele é muito, muito bonzinho, é o único internando que eu não preciso de ajuda para cuidar”.
Minha última refeição tinha sido na sexta à noite, então minha dona tentou me dar comida, biscrock, recusei, não tinha vontade de nada, absolutamente nada. Aí ouvi outros veterinários conversando que minha situação era muito grave, que a inflamação tinha se espalhado e que seria necessário passar uma sonda nasogástrica pra me alimentar. Mas a sonda não resolveu, retiraram alimentos em decomposição e muito liquido, meus órgãos não processavam, minha dor era gigante, estava prostrado. Fiquei triste ao ver a decepção dos meus donos que tinham a expectativa de me levar pra casa. Minha dona pediu para passar a noite comigo, mas eles não autorizaram, fiquei chateado, inseguro, podiam ter permitido, eu sou idoso, estava com medo, com muita dor. Para me confortar, ela me cobriu bem, fez um apoio pro meu queixo com duas mantas e como sempre fazia quando ia embora pro trabalho me acarinhou e falou “eu já volto”.
Na segunda feira pela manhã fui levado para encontrar meus donos numa sala reservada, a equipe conversou com eles sobre o meu estado irreversível, depois se retirou e tivemos um momento família. No colo da minha dona relaxei e ouvi deles o quanto eram gratos por nossa convivência, que eu os tornei pessoas melhores, muito, muito mais felizes, que em matéria de fidelidade e amor eu havia sido mestre, que fui muito amado e que eu poderia ir em paz.
Fiz minha partida no colo da minha dona às 11:30hs, recebendo o carinho do meu dono que estava ao lado. Relaxei, não suspirei apenas relembrei como fui feliz. Sei que eles também tinham a certeza que foram amados, demostrei isso todos os 6.188 dias da nossa convivência, essa foi minha missão amar, ser fiel, alegrar, desestressar e iluminar.
A amiga da minha dona e minha amiga também, quando soube que eu virei uma estrelinha escreveu pra eles essa mensagem assinada por mim: “Você me libertou e eu voei. Você me amou e eu te amei. Caminhamos juntos na terra, nos encontraremos pelo coração”.
Meus donos cogitaram me enterrar na chácara, mas como futuramente pretendem ir embora, optaram por me cremar. A cremação ocorreu na última terça as 13:30hs, vou seguir com eles pra onde forem, afinal um laço de amor verdadeiro nuca se dissolve, só se transforma. Vou dar uma dica: o vazio só é preenchido com energia, com luz, para os meus donos deixo a luz sincera do meu amor.
Minha vida foi naturalmente simples, vivi com o que recebi, bens materiais não acumulei, apenas me doei e amei. Assim eu vivi, livre, soberano, rei, um quintal só pra mim, corri, brinquei, tomei sol, me espreguicei, fui cuidado, cuidei, fui curado, curei. Fiquei gordinho, fiz dieta emagreci, gostava de rotinas, nos últimos tempos dormia muito, comia menos mas uma coisa é certa minha vida valeu a pena, vivi intensamente, sou feliz.
Energia não morre, agora preciso ir, São Francisco está me esperando.
Com carinho,
Thorzinho
*20/06/2005
+18/07/2022