Páscoa de 1998. No dia 15 de abril, fomos a uma feira de animais dispostos a adotar um Beagle. Mas, no caminho, parando para uma visita a um estande de Cockers Spaniels, um deles, branquinho, frágil, ainda muito pequeno _ você! _ se acomodou, e dormiu imediatamente, no colo do Castello.
Não tínhamos mais que escolher: você nos tinha escolhido. Antes que decidíssemos adotá´lo, você nos adotou!
E, ao longo de dez anos, foi sempre assim: você sempre grudado em nós dois.
Atento a nossos menores movimentos, vigilante, interessado em tudo (até em nossos espirros!), uma presença que nunca falhava, e sempre disposto a dar atenção e amor.
É longa, muito longa, a lista de palavras, e mesmo frases do português que você aprendeu a entender. Você foi um cão de português fluente, um cão sofisticado e criativo, que honrou o nome de Antonio Gaudí.
Às vezes, muitas vezes, você latia forte, meio desesperado até, não de raiva, ou de medo, mas tentando dizer alguma coisa. Alguma palavra, ou frase, que na verdade nunca precisou dizer, pois nós o entendíamos. Nós também aprendemos a "latir” um pouco, ou, pelo menos, a compreender o significado de seus resmungos e latidos.
Foi assim: uma relação de troca e amor ininterruptos entre nós três.
Sua paixão enlouquecida pelas bolas _ quantas bolas, de tênis, de borracha, coloridas, nós lhe trouxemos de viagem?
Seu ódio às malas _ foi sempre um sinal de que íamos "sumir” por uns dias, e você logo se encolhia na cama, ou num canto do quarto, os olhos caídos, o ar desiludido.
Não precisava ser uma viagem. Se você percebia que íamos sair, logo se encolhia na cama, ou num canto do quarto. Só uma frase, "Gaudizinho vai ficar”, o consolava um pouco. Ela era uma garantia de que voltaríamos logo. E cada vez que voltávamos, éramos recebidos como se chegássemos de uma volta ao mundo.
Sempre com a bola na boca, você fazia sua dança especial de chegada, uma maneira ímpar de expressar saudade e alegria.
Quanto à gula, nem se fala. Porque teve problemas de fígado (só podia comer ração Hepatic, prescreveu o Maurício), você teve sempre que se contentar com pedaços de cenoura, lascas de maçã, rodelas de banana, um pouco de mamão, ou de manga. Um cão vegetariano! – mas nem por isso um cão menos feliz.
Seus suspiros profundos quando você começava a dormir. Seu ronco quase humano.
Sua alegria em "dormir abraçado”, expressão que você não só conhecia, mas sempre admirou.
Toda manhã, enquanto o Joaquim o acordava com um célebre "au, au, au, au, au”, você se jogava entre as cobertas, barriga para cima, patas para lá e para cá, num balé que também era uma ginástica, e que era mais uma vez uma manifestação de amor.
"Gaudi é um cachorro que gosta de viver”, ouvimos várias vezes de amigos _ e eles entenderam tudo!
Castello sempre se orgulhou (e até hoje se orgulha) de dizer que não era seu dono, era seu Mordomo. Porque era sempre uma alegria fazer você mais e mais feliz. E qualquer coisa, por menor que fosse, lhe dava sempre mais felicidade.
Até que veio uma doença malvada, que o fez sofrer muito.
Ficamos com você, noites e noites a fio, cantando canções íntimas, relembrando brincadeiras, fazendo carinho e dando colo. Mas chegou o dia em que não deu mais, em que você não suportou mais, e dormiu para sempre.
Entrou nesse sono profundo nos braços do Joaquim, que suportou a dor, enquanto o Castello se escondia da dor (como se isso fosse possível) na sala ao lado. Você dormiu sereno, com o ar digno que sempre teve.
Na tarde seguinte, espalhamos suas cinzas entre quatro lindos ipês amarelos, no parque em frente a nosso apartamento. Mal terminamos de fazer isso, e caiu uma chuva forte. Era a natureza decidida a entranhar você, para sempre, ao nosso lado.
Você foi o cão de nossas vidas _ e entendam isso em todos os sentidos que puderem, porque ainda faltarão outros sentidos!
Nossa gratidão ao veterinário e amigo Mauricio Staub, que cuidou de Gaudí, não só com profissionalismo, mas também com carinho.
E aos amigos queridos João Emílio e Marcos Dunaiski, que nos ampararam e ajudaram no momento mais difícil.